Monthly Archives

2 Articles

Crônicas

Apenas uma história de mãos dadas…

Posted by Edgar on

A playlist toca uma velha música do Genesis, o vento sopra forte, um uivo se faz ouvir pela fresta da janela, mas apesar da pouca distância, reluto em fechá-la por completo. Faz frio lá fora e agora percebo que o cão que sempre costumava latir, sumiu.

Olho para a janela e vejo o meu reflexo. A imagem de mim mesmo se mistura a luminosidade âmbar das luzes do condomínio. Meu reflexo olha para mim ou eu olho para ele? Difícil saber…

Uma vez, num ônibus, voltando de uma viagem ao litoral, uma garota sentou-se ao meu lado. Sempre fui uma pessoas de poucos amigos, de poucas palavras. Eu vinha na poltrona do corredor. Muitos preferem a janela, mas quando se tem quase 1,90m, o corredor e a possibilidade de esticar as penas através dele é um pequeno luxo. Eu havia embarcado na rodoviária.

Naquela manhã eu havia terminado um namoro. Na verdade, haviam terminado comigo. Namoro de verão. Ela vivia no litoral, eu no interior. Passávamos alguns fins de semana juntos. Tenho boas lembranças daquele tempo, mas aquela era uma manhã triste. No auge dos meus 17 anos, a vida era uma incógnita!

A garota ficou com a poltrona da janela. Ajeitou sua mochila no compartimento de bagagens, pediu-me licença e sentou-se ao meu lado. Seu perfume era intenso. Tinha cabelos longos, lisos e que lhe caíam sobre os ombros. Num movimento delicado, puxou-os com os dedos para detrás da orelha, movimento que me permitiu, nas rápidas e discretas olhadelas de canto de olho, ver-lhe o perfil do rosto. Trajava jeans, uma blusa branca com desenhos cujo padrão eu não me recordo e trazia nas mãos um casaco cor de rosa. Ela era mais nova do que eu, talvez tivesse 15 ou 16 anos. Ciente da minha inabilidade em iniciar uma conversa trivial, apoiei a cabeça no encosto do banco e mergulhei nos meus pensamentos.

Já iniciada a subida da serra, quando o ônibus entrou no primeiro túnel, levei um susto. Ela havia segurado, com força, minha mão direita. Com a cabeça projetada para o peito, ela tinha os olhos fechados. A pressão de sua mão sobre a minha diminuiu quando o ônibus saiu do túnel. Ela soltou minha mão, me olhou envergonhada e disse:

– Desculpe, mas eu tenho medo desses túneis.
– Sem problemas — respondi sem saber ao certo o que dizer depois.
– Tem outros, né?
– Acho que sim, pelos menos mais dois.

Seu olhar procurava um ponto seguro, ela estava mais envergonhada do que eu.

– De que você tem medo? — perguntei depois de alguns segundos de silêncio.
– Não sei dizer, acho que é porque fica escuro.
– Você não precisa ter medo, eu já desci e subi essa serra várias vezes.

Antes que ela pudesse dizer algo, ela percebeu que outro túnel se aproximava. Seu olhar cruzou com o meu, havia ali um misto de angústia e cumplicidade. Lhe ofereci a mão. Ela fechou os olhos com um quase sorriso e o interior do ônibus escureceu. Feixes intercalados de luz amarelada, do interior do túnel, misturavam-se aos zumbidos e buzinas dos carros que vinham nas pistas paralelas ao ônibus. Nunca entendi porque as pessoas buzinavam dentro do túnel e a pressão da mão daquela garota sobre a minha dava a entender que aquilo a incomodava.

Aquele túnel era o mais longo, mas depois de um ou dois minutos, estávamos novamente na claridade de uma manhã cinza, como todas as manhãs na serra. Eu ainda segurava a mão dela, mesmo sabendo que daquele ponto em diante, não haveria mais túneis.

– Lugares escuros me dão medo — ela quebrou o silêncio.
– Mas não há porque ter medo, o escuro é apenas a ausência de luz.

Sempre fui metido a saber de tudo um pouco. Nessa época eu devorava livros sobre ocultismo e certamente devo ter tirado essa frase de algum deles.

– Você deve me achar boba.

Eu não soube o que dizer, apenas movi a cabeça em negativa. Até então, eu não havia reparado que, à exceção de duas senhoras que vinham nos primeiros bancos, um senhor que estava duas poltronas à frente e o próprio motorista, não havia mais ninguém no ônibus. Era uma segunda-feira, talvez um dia de pouco movimento.

– Às vezes demoro para dormir, por causa do escuro. Fico imaginando coisas.
– Coisas?
– Sim, coisas ruins que existem no escuro, na noite…
– Não existem coisas ruins no escuro — disse o menino que, 7 anos antes, se cagava nas calças de medo de ir do quarto ao banheiro no meio da madrugada! — Já parou para pensar que enquanto você está dormindo, tanta coisa boa acontece?
– Que coisas boas?
– Hum — pense, animal — tem pessoas que trabalham durante a noite. Médicos, policiais… o padeiro!
– O padeiro? — ela riu.
– Ué! Quando você acorda e come seu pão com manteiga, é graças ao padeiro, que na noite, sem medo do escuro, está trabalhando! — me senti um gênio da argumentação.
– Eu como pão de forma! — ela exclamou sorrindo para mim.

A playlist jogou um Paul Young na roda, fui catapultado para outras searas, outras lembranças… de um beijo roubado em uma festa a qual eu e o meu fiel escudeiro não havíamos sido convidados, beijo roubado da dona da festa, da garota mais bonita, que fez de mim capacho… maldito Paul Young! Voltemos ao ônibus.

Viemos o restante da viagem conversando trivialidades. Já em Sorocaba, eu desceria no corpo de bombeiros, ela iria até a rodoviária, onde alguém a esperava. Nos despedimos. Ela me acompanhou com os olhos enquanto eu desembarcava. Já na calçada, antes que o farol abrisse e o ônibus zarpasse, ela abriu a janela e disse:

– Meu nome é…

O motorista acelerou o ônibus, fazendo um ruído alto e o nome dela se perdeu entre a fumaça preta que o escapamento jogou na minha cara quando ele fez a troca de marcha. Até hoje ignoro o nome dela. Assim como ela deve ignorar o meu. Nunca mais a vi.

No auge dos meus 43 anos, a vida segue sendo uma incógnita…

E.

Reflexões

Ordinário…

Posted by Edgar on

O fantasma de Hume me assombra. Impressões, nada mais há que impressões. A solidez das minhas ideias se desmancha na profundidade daquele olhar. Ordinariamente, o sol nasce todos os dias.

O banho é o catalisador das minhas epifanias. A água morna que desce pelos ombros, o som desritmado das gotas atingem o piso, os fractais de respingos no box, panos de fundo de um processo maior: o turbilhão de fragmentos de uma noite, uma madrugada, um alvorecer. Cylon, eu não passo de um maldito cylon humano.

Ser ou não ser, eis a questão. Eu li Shakespeare na faculdade. Lembro menos da obra que da minha professora de literatura inglesa. Ela era jovem, bonita, inteligente. Antes de Shakespeare, em literatura norte-americana, fiz uma análise sobre um conto do meu xará Edgar Allan Poe. Devorei as páginas de Manuscrito Encontrado Numa Garrafa, cavei fundo a biblioteca da faculdade, não havia Google naqueles tempos, dei minha alma ao trabalho. No dia da apresentação, enquanto as colegas de classe me davam parabéns, a professora me olhou, colocou a mão no queixo em sinal de pausa, e cravou a minha sentença de morte: Edgar, eu esperava mais de você. Dramático? Sim, shakespeariano!

O príncipe atormentado, Hamlet, me atormentou. Quisera eu ser Horácio para dizer-lhe, foda-se Hamlet. Edgar Allan Poe me persegue até hoje, mas Shakespeare eu abandonei. Atormentado pela decepção da minha professora, nunca tive a coragem de lhe perguntar: o que raios você esperava de mim? De mim? Justo de mim? Ser ou não ser, acabei no teatro. Por circunstâncias que ficarão para outro texto, embarquei numa trupe teatral. Nada de Shakespeare, apenas Veríssimo, o filho. Numa noite de bebedeira com os caras da trupe, encontrei a minha professora com a trupe dela num desses bares da vida. Ela se levantou ao me ver, me chamou e me apresentou às pessoas da mesa: Edgar, o único da turma dele que teve 10 comigo. Aqui já estávamos em literatura inglesa. Não sei o que eu fiz com aquela prova sobre Hamlet, mas aquele 10 era tão ordinário quanto eu mesmo. Meu 10 estava em um manuscrito a ser encontrado numa garrafa.

Epifania, era sobre isso que eu falava. O banho, momento máximo das minhas epifanias. Battlestar Galactica está longe de ser tão notória quanto Hamlet, mas há dilemas que são universais, afinal, não é isso que torna algo clássico, a universalidade? Cylons humanos não sabem que são cylons, eles não sabem que são máquinas biológicas construídas por humanos de verdade (verdade?). Eles apenas pensam que são humanos e, como tais, que são especiais. E, meu amigo, existe uma grande distância entre se achar especial e ser especial. Ser ou não ser, eis a questão.

Ainda que a cena não seja essa, alguém aponta o dedo na sua cara. Te tira da sua confortável posição, ou, na ficcional Battlestar Galactica, um laser disparado no meio do seu peito e… bum! você renasce numa nave-de-ressureição e, em meio a fluídos e cabos, se percebe cylon. Com pele, ossos e um rosto atraente, mas nada mais que um cylon.

O problema das epifanias: elas estalam feito pipoca! Pá, pum, lá está ela… mas vai levar tempo, muito tempo para eu digerir o eco desse estalo.

E.