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Reflexões

Ordinário…

Posted by Edgar on

O fantasma de Hume me assombra. Impressões, nada mais há que impressões. A solidez das minhas ideias se desmancha na profundidade daquele olhar. Ordinariamente, o sol nasce todos os dias.

O banho é o catalisador das minhas epifanias. A água morna que desce pelos ombros, o som desritmado das gotas atingem o piso, os fractais de respingos no box, panos de fundo de um processo maior: o turbilhão de fragmentos de uma noite, uma madrugada, um alvorecer. Cylon, eu não passo de um maldito cylon humano.

Ser ou não ser, eis a questão. Eu li Shakespeare na faculdade. Lembro menos da obra que da minha professora de literatura inglesa. Ela era jovem, bonita, inteligente. Antes de Shakespeare, em literatura norte-americana, fiz uma análise sobre um conto do meu xará Edgar Allan Poe. Devorei as páginas de Manuscrito Encontrado Numa Garrafa, cavei fundo a biblioteca da faculdade, não havia Google naqueles tempos, dei minha alma ao trabalho. No dia da apresentação, enquanto as colegas de classe me davam parabéns, a professora me olhou, colocou a mão no queixo em sinal de pausa, e cravou a minha sentença de morte: Edgar, eu esperava mais de você. Dramático? Sim, shakespeariano!

O príncipe atormentado, Hamlet, me atormentou. Quisera eu ser Horácio para dizer-lhe, foda-se Hamlet. Edgar Allan Poe me persegue até hoje, mas Shakespeare eu abandonei. Atormentado pela decepção da minha professora, nunca tive a coragem de lhe perguntar: o que raios você esperava de mim? De mim? Justo de mim? Ser ou não ser, acabei no teatro. Por circunstâncias que ficarão para outro texto, embarquei numa trupe teatral. Nada de Shakespeare, apenas Veríssimo, o filho. Numa noite de bebedeira com os caras da trupe, encontrei a minha professora com a trupe dela num desses bares da vida. Ela se levantou ao me ver, me chamou e me apresentou às pessoas da mesa: Edgar, o único da turma dele que teve 10 comigo. Aqui já estávamos em literatura inglesa. Não sei o que eu fiz com aquela prova sobre Hamlet, mas aquele 10 era tão ordinário quanto eu mesmo. Meu 10 estava em um manuscrito a ser encontrado numa garrafa.

Epifania, era sobre isso que eu falava. O banho, momento máximo das minhas epifanias. Battlestar Galactica está longe de ser tão notória quanto Hamlet, mas há dilemas que são universais, afinal, não é isso que torna algo clássico, a universalidade? Cylons humanos não sabem que são cylons, eles não sabem que são máquinas biológicas construídas por humanos de verdade (verdade?). Eles apenas pensam que são humanos e, como tais, que são especiais. E, meu amigo, existe uma grande distância entre se achar especial e ser especial. Ser ou não ser, eis a questão.

Ainda que a cena não seja essa, alguém aponta o dedo na sua cara. Te tira da sua confortável posição, ou, na ficcional Battlestar Galactica, um laser disparado no meio do seu peito e… bum! você renasce numa nave-de-ressureição e, em meio a fluídos e cabos, se percebe cylon. Com pele, ossos e um rosto atraente, mas nada mais que um cylon.

O problema das epifanias: elas estalam feito pipoca! Pá, pum, lá está ela… mas vai levar tempo, muito tempo para eu digerir o eco desse estalo.

E.