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Crônicas

Tempos confusos

Posted by Edgar on

Vivemos tempos confusos, pensou. Do outro lado da rua, dois garotos se estapeavam. Entre xingamentos e tabefes, o menor levava vantagem. Se valendo da leveza e rapidez, confiante de que a briga estava ganha, não percebeu o cruzado de esquerda. O sopapo atinguiu-lhe em cheio a bochecha. Desequilibrado, foi ao meio fio. Deu de testa contra os paralelepipedos. Com sorte, teria morrido ali mesmo, com o impacto. Mas o azar fez com que o crânio fosse esmagado pelas rodas do circular. Um dos olhos saltou da óribita e agora mirava, se é que pode-se dizer que mirava, as mãos trêmulas de uma senhora que tomava seu café no outro lado da rua. Ninguém notou, mas o circular em questão fazia o trajeto ao Paraíso, bairro que, apesar do nome, periférico, concentrava o populacho. Quando a polícia chegou ao local, o maior, dono do potente cruzado de esquerda, já se havia feito fumaça. A mulher de mãos trêmulas balbuciava algo ao oficial. Seus olhos fixos no olho que a fitava. O condutor jurava que não vira o garoto. Os passageiros, horrorizados com o atraso que lhes sucederia. Dino, o gato vira-latas que frequentava o beco, pos-se a cheirar a pasta encefálica que se misturava ao sangue do menino. Ai, Jesus, esclamou uma beata que deu com a cena enquanto vinha de mexericos com uma de suas irmãs de fé. Mal sabe ela e, para ser fiel ao relato, só virá a sabê-lo mais tarde, quando chegue em casa de sua filha, que o, palavras dela, “mais um desses garotos vagabundos de rua” era Rubinho, seu neto. Aliás, Rubinho era dessas crianças mimadas, criadas a pão-de-ló. Estudava em colégio chique, daqueles que davam goiabada com queijo fresco no lanche da tarde. Seus pais, aspirantes às altas rodas da sociedade, haviam prosperado no ramo da confeitaria. Jomar, o pai, dono de talentos ímpares no manuseio do açucar, havia criado uma bomba de creme que, perdoem-me o trocadilho, era um estouro. Cinara, a mãe, frequentadora assídua de toda e qualquer reunião na qual houvesse senhoras de bem, fazia o comercial. Juntos, fizeram muito dinheiro e logo decidiram que Rubinho teria educação de lorde. Duas quadras dali, César de nascimento, Cesão para os íntimos, olhava fixamente para a lousa. Dona Zulmira, professora de Estudos Sociais, inquiria aos demais. Onde está Rubinho, que não voltou do intervalo? Quando terminou seu nono cigarro, nem circular, nem oficiais, nem rabecão e muito menos Rubinho. A tarde voltava ao seu fluxo normal. Dino, o gato, petecava entre as patas o novo brinquedo. O olho. Vivemos tempos confusos, pensou novamente, enquanto pagava a conta.

Crônicas

Café gelado…

Posted by Edgar on

Fiz tudo certo. Coloquei a cápsula na máquina, ajustei a caneca, a sua. Sim, quando você não está por aqui eu uso a sua caneca. É nela que eu bebo o meu café. Há muitas canecas aqui, e você dirá que são todas minhas, é verdade. Mas desde o primeiro café com você, essa sempre foi a sua caneca. Apertei o botão, o verde.

Abri os olhos. A claridade do dia que nascia já se fazia notar. Teu ombro desnudo me convidava a percorre-lo. Me permiti admira-lo por alguns segundos antes de projetar meu corpo sobre o seu, antes de seguir o contorno do teu ombro com meu rosto, roçando-te a pele com meus lábios, deslizando-me sobre a curva do teu pescoço, antes de sussurrar-te “bom dia” para, em seguida, afundar-me nos teus cabelos. Longos sorrisos estampados nos travesseiros.

Lá fora, a tarde vinha com uma chuva intensa. Diferente daquela chuvinha da manhã, mais calma, suave como teus beijos em meu rosto. Intensa, a chuva ao cair no cair da tarde respingava sobre a janela. Pequenas gotas de suor sobre nossos corpos intensos. Pequenos trovões ofegantes reverberando em lençóis amassados.

Quando dei por mim, a chuva despedia-se com umas poucas gotas aqui e ali. Na caneca, o café gelado, esquecido, testemunha da minha vontade de você. Troquei a cápsula, troquei a caneca, agora a minha. Apertei o botão, o verde…

Crônicas

Tobias

Posted by Edgar on

Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia.

Há tempos Tobias era saco de pancadas na firma. Todos, sem exceção, zombavam dele. Uns descaradamente, outros, pelas costas, nas conversas ao redor da mesa do café. Até mesmo dona Judith, a copeira, aquela doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas. Café que aromatizava o escárnio sobre Tobias. Justo ela, agora, puxava o corredor polonês das palavras. Palavras baixas, palavras que vertiam fel. Dona Judith, pensou Tobias. Seria ela, ou melhor, através dela, que Tobias se vingaria. Sim, seria o café o veículo da sua vingança. Café que ele, Tobias, sequer gostava. Nunca fora dado aos fetiches do café. Nunca compreendeu direito as aglomerações e conversinhas em torno do café. Embora nunca tenha sido chamado a bebê-lo com os demais, achava-o ruim. Certa vez, sem que ninguém o visse, bebericou uma ou duas gotas. Foi o suficiente para que o asco lhe tomasse. O café lhe enjoava. Não o de dona Judith, mas qualquer café. Talvez por isso, pelo desprezo ao café, tenha sido justamente o café o seu eleito. Escrutinou a memória em busca do horário de maior movimento no canto do café. O canto asqueroso onde pessoas asquerosas diziam: Até quando vamos aturar o Tobias? Vejam, lá vem o Tobias, credo. Sai daqui, Tobias, ninguém te quer. Jurandir, o porteiro, todos os dias esperava, de tocaia, a chegada de Tobias. Tão logo Tobias lhe dava às costas, cuspia-lhe. Não um cuspe qualquer, mas daqueles, catarrentos, cuja a viscosidade impregnava quem dele fosse alvo. E o alvo era sempre Tobias. Às vezes errava, às vezes acertava. E em ambos os casos, Tobias seguia em silêncio, escravo de sua condição. Quando o dono da firma estava por perto, todos se faziam de bons-moços, uns até verbalizavam, hipócritas, uma saudação ao Tobias na frente de seu Cróvis. Sim, Cróvis, com erre mesmo. Na certa, um erro de registro. Seu Cróvis nascera na roça, em tempos outros. Mas, calma lá, a história é sobre o Tobias! E Tobias tinha a afeição de seu Cróvis. Era o único que se achegava no canto de Tobias, estrategicamente colocado, pelos demais, o mais distante possível da mesa do café. Mas seu Cróvis, depois de percorrer o galpão, recolhia-se em seu escritório, contabilizar a empresa. Tobias, longe de seu protetor, voltava a ser alvo dos olhares maldosos, das palavras virulentas. O café! Tobias arquitetava seu plano há dias. O melhor horário: após o almoço. Ao meio-dia todos se ausentavam para comer no restaurante próximo. Todos, menos dona Judith, que almoçava ás treze horas. Havia uma pequena janela de tempo, cinco minutos. Era o tempo entre dona Judith deixar o café pós-almoço coando na cozinha e ir buscar as garrafas térmicas na mesa do café. A maioria, logo após a volta do almoço, já rondava o canto do café. A porta da cozinha não se via de lá. Tobias teria exatos cinco minutos para sair do seu canto sem ser percebido, adentrar na cozinha e realizar sua vendetta.

Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia. Caminhou sereno até uma pilha de caixas e esperou dona Judith sair da cozinha em busca da garrafa térmica. Fora do campo de visão de todos, Tobias entrou pela porta, saltou sobre a mesa, saltou para a pia e, diante do coador de pano que vertia o negro líquido para um canecão, ergueu a pata traseira e, com uma feição quase humana, com um sorriso de Monalisa, diriam, deixou verter sua urina, que ele segurava desde a manhã, para dentro do coador. Contou mentalmente os minutos e, ainda que lhe restassem mais alguns mililitros, saltou da pia direto ao chão, esgueirou-se pela porta e, novamente oculto pela pilha de caixas, passou despercebido por dona Judith, que cantarolava uma antiga canção enquanto trazia as garrafas térmicas vazias. Seguindo o ritual de sempre, dona Judith encheu ambas as garrafas, em uma delas, antes, adicionou as habituais colheradas de açúcar, afinal, era preciso agradar ambos os públicos, os da doçura e os da amargura. Garrafas cheias, voltou à mesa do café, saboreá-lo com os demais colegas.

Tobias ainda era filhote quando seu Cróvis o resgatou. Fora vitima da crueldade de uma bando de adolescentes. Haviam queimado-o plástico derretido, dado-lhe algumas pancadas com galhos de árvore e largado à beira da morte à beira da estrada. Perdera mais da metade dos pelos, tinha uma orelha partida ao meio e faltava-lhe um olho. Desde Seu Cróvis deu-lhe os cuidados necessários e um canto para ficar. E, do seu canto, agora, Tobias via seus algozes maldizendo o café de dona Judith. Mas que porcaria é essa? Experimenta isso, sua velha louca. O quê você colocou aqui? Em poucos minutos, dona Judith, a doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas, sentiu na pele a maledicência da qual somente um bicho humano é capaz. Tobias acompanhou-a com os olhos até a cozinha. Ouviu-a chorar e lamentar, entre suspiros, que aquilo, a forma como fora tratada, não se fazia nem com um cachorro. Seu Cróvis, que descia para o café, foi alertado. Estava um lixo, tinha gosto de urina, disseram-lhe. A caminho da cozinha, pronto a confortar dona Judith, seu Cróvis percebeu que Tobias não estava em seu canto. Chamou-o uma vez. Duas vezes. Três vezes. Nada.

Tobias, livre de sua covardia, havia ganhado o mundo, embora ainda estivesse a apenas dois quarteirões do galpão.

Crônicas

Apenas uma história de mãos dadas…

Posted by Edgar on

A playlist toca uma velha música do Genesis, o vento sopra forte, um uivo se faz ouvir pela fresta da janela, mas apesar da pouca distância, reluto em fechá-la por completo. Faz frio lá fora e agora percebo que o cão que sempre costumava latir, sumiu.

Olho para a janela e vejo o meu reflexo. A imagem de mim mesmo se mistura a luminosidade âmbar das luzes do condomínio. Meu reflexo olha para mim ou eu olho para ele? Difícil saber…

Uma vez, num ônibus, voltando de uma viagem ao litoral, uma garota sentou-se ao meu lado. Sempre fui uma pessoas de poucos amigos, de poucas palavras. Eu vinha na poltrona do corredor. Muitos preferem a janela, mas quando se tem quase 1,90m, o corredor e a possibilidade de esticar as penas através dele é um pequeno luxo. Eu havia embarcado na rodoviária.

Naquela manhã eu havia terminado um namoro. Na verdade, haviam terminado comigo. Namoro de verão. Ela vivia no litoral, eu no interior. Passávamos alguns fins de semana juntos. Tenho boas lembranças daquele tempo, mas aquela era uma manhã triste. No auge dos meus 17 anos, a vida era uma incógnita!

A garota ficou com a poltrona da janela. Ajeitou sua mochila no compartimento de bagagens, pediu-me licença e sentou-se ao meu lado. Seu perfume era intenso. Tinha cabelos longos, lisos e que lhe caíam sobre os ombros. Num movimento delicado, puxou-os com os dedos para detrás da orelha, movimento que me permitiu, nas rápidas e discretas olhadelas de canto de olho, ver-lhe o perfil do rosto. Trajava jeans, uma blusa branca com desenhos cujo padrão eu não me recordo e trazia nas mãos um casaco cor de rosa. Ela era mais nova do que eu, talvez tivesse 15 ou 16 anos. Ciente da minha inabilidade em iniciar uma conversa trivial, apoiei a cabeça no encosto do banco e mergulhei nos meus pensamentos.

Já iniciada a subida da serra, quando o ônibus entrou no primeiro túnel, levei um susto. Ela havia segurado, com força, minha mão direita. Com a cabeça projetada para o peito, ela tinha os olhos fechados. A pressão de sua mão sobre a minha diminuiu quando o ônibus saiu do túnel. Ela soltou minha mão, me olhou envergonhada e disse:

– Desculpe, mas eu tenho medo desses túneis.
– Sem problemas — respondi sem saber ao certo o que dizer depois.
– Tem outros, né?
– Acho que sim, pelos menos mais dois.

Seu olhar procurava um ponto seguro, ela estava mais envergonhada do que eu.

– De que você tem medo? — perguntei depois de alguns segundos de silêncio.
– Não sei dizer, acho que é porque fica escuro.
– Você não precisa ter medo, eu já desci e subi essa serra várias vezes.

Antes que ela pudesse dizer algo, ela percebeu que outro túnel se aproximava. Seu olhar cruzou com o meu, havia ali um misto de angústia e cumplicidade. Lhe ofereci a mão. Ela fechou os olhos com um quase sorriso e o interior do ônibus escureceu. Feixes intercalados de luz amarelada, do interior do túnel, misturavam-se aos zumbidos e buzinas dos carros que vinham nas pistas paralelas ao ônibus. Nunca entendi porque as pessoas buzinavam dentro do túnel e a pressão da mão daquela garota sobre a minha dava a entender que aquilo a incomodava.

Aquele túnel era o mais longo, mas depois de um ou dois minutos, estávamos novamente na claridade de uma manhã cinza, como todas as manhãs na serra. Eu ainda segurava a mão dela, mesmo sabendo que daquele ponto em diante, não haveria mais túneis.

– Lugares escuros me dão medo — ela quebrou o silêncio.
– Mas não há porque ter medo, o escuro é apenas a ausência de luz.

Sempre fui metido a saber de tudo um pouco. Nessa época eu devorava livros sobre ocultismo e certamente devo ter tirado essa frase de algum deles.

– Você deve me achar boba.

Eu não soube o que dizer, apenas movi a cabeça em negativa. Até então, eu não havia reparado que, à exceção de duas senhoras que vinham nos primeiros bancos, um senhor que estava duas poltronas à frente e o próprio motorista, não havia mais ninguém no ônibus. Era uma segunda-feira, talvez um dia de pouco movimento.

– Às vezes demoro para dormir, por causa do escuro. Fico imaginando coisas.
– Coisas?
– Sim, coisas ruins que existem no escuro, na noite…
– Não existem coisas ruins no escuro — disse o menino que, 7 anos antes, se cagava nas calças de medo de ir do quarto ao banheiro no meio da madrugada! — Já parou para pensar que enquanto você está dormindo, tanta coisa boa acontece?
– Que coisas boas?
– Hum — pense, animal — tem pessoas que trabalham durante a noite. Médicos, policiais… o padeiro!
– O padeiro? — ela riu.
– Ué! Quando você acorda e come seu pão com manteiga, é graças ao padeiro, que na noite, sem medo do escuro, está trabalhando! — me senti um gênio da argumentação.
– Eu como pão de forma! — ela exclamou sorrindo para mim.

A playlist jogou um Paul Young na roda, fui catapultado para outras searas, outras lembranças… de um beijo roubado em uma festa a qual eu e o meu fiel escudeiro não havíamos sido convidados, beijo roubado da dona da festa, da garota mais bonita, que fez de mim capacho… maldito Paul Young! Voltemos ao ônibus.

Viemos o restante da viagem conversando trivialidades. Já em Sorocaba, eu desceria no corpo de bombeiros, ela iria até a rodoviária, onde alguém a esperava. Nos despedimos. Ela me acompanhou com os olhos enquanto eu desembarcava. Já na calçada, antes que o farol abrisse e o ônibus zarpasse, ela abriu a janela e disse:

– Meu nome é…

O motorista acelerou o ônibus, fazendo um ruído alto e o nome dela se perdeu entre a fumaça preta que o escapamento jogou na minha cara quando ele fez a troca de marcha. Até hoje ignoro o nome dela. Assim como ela deve ignorar o meu. Nunca mais a vi.

No auge dos meus 43 anos, a vida segue sendo uma incógnita…

E.

Crônicas/Reflexões

Andanças…

Posted by Edgar on

O caminho é sempre o mesmo. A playlist vai ao sabor da aleatoriedade. As pessoas nos carros olham-me com um ar indignado. Elas lá, presas em seus ares condicionados, eu cá, em meio a manhã, vagando… Há uma fábrica no meio do caminho. Caminhões, operários, o cheio de óleo diesel misturam-se com a brisa gelada. Ao meu lado, um estudante. Sua mochila pesa mais que o necessário. O volume da música é baixo, assim posso ouvir o som de meus passos. As folhas de bambu balançam ao vento. Uma senhora cruza meu caminho. Seu olhar cruza o meu. Um olhar sofrido. Aceno timidamente com a cabeça, como que diz bom dia sem mover os lábios. Ela retribui mais timidamente ainda e aperta o passo. Ao longe, vejo-a subir no ônibus. Vejo copos de papel pelo gramado. Um maço de cigarros vazio. Uma embalagem de sorvete. Penso no que eu disse outro dia a um grupo de jovens, sobre porque jogamos lixo nas ruas. Quando dou pro mim, já estou novamente entre os bambuzais. As folhas rodopiam no chão, misturam-se à areia. Outros dois estudantes dividem o trecho comigo. Suas mochilas também parecem pesar mais que o necessário. Conversam sobre algo que não consigo compreender, suas palavras misturam-se à letra da música que ouço. A música fala de um amor qualquer. Os estudantes riem. Há uma cumplicidade. No serás capaz de odiarme. Enquanto o refrão da música me faz pensar em tantas coisas já vividas, os estudantes seguem em frente. Eu faço a curva. Pelos vidros vejo as estantes, os livros. Entrei poucas vezes naquela biblioteca. Deveria entrar mais, penso. A playlist joga com minhas ideias. As pernas seguem o trajeto. Olho para a bandeira que tremula. Janelas de escritórios, gabinetes. O centro de poder é feito de concreto e vidro, a biblioteca de vidro e metal. O lago é falso. Artificial. Mas não deixa de ser belo. As ondulações da água refletem o tímido sol que se esconde atrás de nuvens. A timidez do sol, a minha timidez, a timidez daquela senhora. O farol está vermelho para mim. Me obriga a parar. As pessoas nos carros continuam a me olhar com indignação. Luz verde, cruzo a avenida. Vejo o apresentador do jornal chegando à TV. Seu rosto é familiar. Mas não faço ideia de sua vida, de sua trajetória, de quem seja. Penso em quantas pessoas realmente me conhecem. 4 Non Blondes começa a tocar. Banda de uma música só. O cheio de diesel continua no ar, a fábrica e os caminhões olham para mim e me perguntam: what’s going on? Ou será a música? Em frente a universidade pública, um carro se joga contra mim. E me xinga. Ousadia minha transitar justo na hora que sua máquina e sua pressa cruzam a calçada. O susto me traz de volta sem que eu pudesse responder à fábrica, aos caminhões ou à música. A portaria do condomínio está, agora, a poucos metros. Retiro os fones de ouvido e um estranho silêncio se faz…

Crônicas

Copos cheios…

Posted by Edgar on

É sempre bom lembrar
que um copo vazio
está cheio de ar…

(Gilberto Gil)

Sobre a mesa, um copo. De vidro. Transparente. O copo está lá, ele o olha absorto. Estava vazio. Não se recorda o que havia no copo. Cerveja, suco de laranja, groselha? Talvez água. A verdade é que não se recordava nem mesmo há quanto tempo o copo lá estava. Tinha por hábito lagar os copos pela casa. Só se lembrava de recolhe-los quando já não havia mais nenhum outro no armário. Eram copos de todos os tipos. Copos bonitos, feios, grandes, pequenos. Alguns foram ganhos, outros roubados. E havia os de requeijão. Aquele sobre a mesa era apenas mais um copo cheio de ar. Ar à espera do despejo de si por algum liquido ali despejado. Absorto a olhar o copo, a sua memória transbordou…

Lembrou-se do aluno. O aluno que lhe indagava sobre o universo, sobre os mistérios impróprios à filosofia. O aluno cujos pais tinham por função ignorá-lo. O aluno cujos amigos tinham por prazer atormentá-lo. Lembrou-se daquele copo cheio de sonhos, de talentos. Aquele copo que todos diziam vazio. O copo que num dia cinzento, rompeu-se. Estilhaçou-se em fezes nas paredes do banheiro masculino. Tirou de dentro de si tudo aquilo que diziam que ele era. Escreveu nas paredes todos os excrementos verbais que ouvira com seu próprio excremento. Tudo o que aquele copo queria era ser um corpo, um alguém. Tudo o que lhe permitiram foi ser um copo cheio de dor, de raiva, um copo que, vez ou outra, indagava sobre o universo, sobre os mistérios impróprios à filosofia…

Lembrou-se da garota. A garota que, ignorando que todos o ignoravam, sorriu-lhe. Sorriu-lhe ainda que não tivesse motivos para sorrir. A garota que lhe contou seus segredos mais íntimos. Segredos que a faziam chorar todas as noites. Chorar por sua impotência adolescente contra um mundo adulto. Um copo trincado por tantas quedas. O copo que, num dia sangrento, pôs para fora aquilo que lhe meteram à força. Tudo o que aquele copo queria era ter seu corpo de volta. Um corpo que lutava para não transparecer suas trincas. Um corpo que escondia-se em sua beleza maquiada. Um corpo cujas lágrimas encharcaram seu ombro. Um corpo trêmulo. Um corpo que lhe sorriu e sobre quem despejou suas lágrimas. Lágrimas que ainda escorrem dos seus olhos quando pensa nela. Aquela garota que em uma noite ensinou-lhe o que ele jamais poderia saber por si só…

Quando deu por si, estava com o copo entre as mãos. Olhou no seu interior e, depois de um longo suspiro, deixou-o cair ao chão. O barulho preencheu o silêncio do cômodo. Os cacos se espalharam pelo piso. Recolheu um dos cacos e levou-o a contra-luz.

Não era mais um copo, não estava mais vazio.

E.

Confissões/Crônicas

Insetos & Luminárias

Posted by Edgar on

Uma da madrugada, sentou em frente ao notebook, fez login no blog e pensou que o silêncio da noite seria um bom companheiro de escrita. Ao fundo, dois cães latiam, um ou outro carro ao longe deixavam o seu rastro sonoro e ali, dentro dele, aquele zumbido estranho que o acompanhava em certos momentos. Escreveu uma frase sobre o zumbido, mas a apagou em seguida, não faria sentido para os leitores, pois estes teriam que estar dentro de sua cabeça para compreender aquele zumbido. O frescor da madrugada entrava por uma das janelas e junto com ele, um ou outro inseto. Lembrou-se que precisava de um inseticida, mas não anotou isso e sabemos que amanhã cedo já terá esquecido dessa necessidade. Mil ideias rodopiavam dentro de sua cabeça, mescladas ao zumbido e ao som de um caminhão que desceu a avenida. Nesta altura, o silêncio da noite se mostrou um péssimo companheiro. Minimizou o navegador, abriu o reprodutor de mídias e selecionou aquela velha banda dos anos 80. Seu alter ego desistiu, até então olhava quieto para mais uma tentativa de por nas linhas do blog as suas incertezas, seu medos, suas fragilidades. Aquela música do a-ha era um golpe de misericórdia em qualquer tentativa de lucidez. O zumbido continuava, mas o alter ego já se tinha posto a dormir. Embalado pela batida pop norueguesa, digitou e apagou a mesma frase pelo menos umas 10 vezes. Decidiu comer. A geladeira era uma vitrine de guloseimas, mas nada o apeteceu, sua fome era de outra coisa, era uma fome às avessas, queria por para fora tudo o que o perturbava naqueles dias, perturbação que tinha nome e sobrenome. Digitou, hesitou, apagou. Maldito covarde, disse para si mesmo. Voltou à geladeira, abriu uma lata de energético e matou-a em um só gole. Rá, agora sim, o alter ego despertou com tanta taurina inundando o sistema circulatório. Agora o bicho pega. Bichos, malditos bichos que entram pela janela, essas desgraças não dormem? Foi até o quarto, pegou um post-it, escreveu INSETICIDA e colou o post-it na porta, próximo a fechadura. O alter ego olhava de soslaio, sabia que aquilo era mais procrastinação que necessidade, mas ainda assim, sentindo a taurina fazer efeito, esperou por algo. De volta ao teclado, respirou fundo e releu tudo o que tinha escrito até agora. Maldito covarde, à merda com sua covardia. Fechou o reprodutor de mídias, chega de a-ha. Chega. Basta. Cadê o zumbido? Cadê os cães? Cadê os carros e insetos. Quando deu por si, estava imerso no silêncio da madrugada, o companheiro pretendido desde o início. Imerso naquele silêncio, deixou-se levar pela fluidez do momento. Não percebeu que enquanto estava longe, seu alter ego pôs-se a digitar loucamente, vomitando toda aquela angústia, todos os medos, raivas, desesperos. Digitou, digitou, digitou até a última gota de taurina evaporar nas asas do pégaso alucinado que voava ao redor da luminária. Subitamente o zumbido, os cães, os carros e os insetos voltaram com fúria. Na tela do notebook, dezenas de linhas surgiram do nada, linhas que esbofeteavam sua cara violentamente, linhas que o fizeram chorar. Apagou-as todas, apagou a luminária. Deslogou-se do blog, desligou-se do notebook. Deitou-se. Dormiu. Dormiu, mas antes pode ouvir seu alter ego dizer: covarde, maldito covarde!