Crônicas

Tempos confusos

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Vivemos tempos confusos, pensou. Do outro lado da rua, dois garotos se estapeavam. Entre xingamentos e tabefes, o menor levava vantagem. Se valendo da leveza e rapidez, confiante de que a briga estava ganha, não percebeu o cruzado de esquerda. O sopapo atinguiu-lhe em cheio a bochecha. Desequilibrado, foi ao meio fio. Deu de testa contra os paralelepipedos. Com sorte, teria morrido ali mesmo, com o impacto. Mas o azar fez com que o crânio fosse esmagado pelas rodas do circular. Um dos olhos saltou da óribita e agora mirava, se é que pode-se dizer que mirava, as mãos trêmulas de uma senhora que tomava seu café no outro lado da rua. Ninguém notou, mas o circular em questão fazia o trajeto ao Paraíso, bairro que, apesar do nome, periférico, concentrava o populacho. Quando a polícia chegou ao local, o maior, dono do potente cruzado de esquerda, já se havia feito fumaça. A mulher de mãos trêmulas balbuciava algo ao oficial. Seus olhos fixos no olho que a fitava. O condutor jurava que não vira o garoto. Os passageiros, horrorizados com o atraso que lhes sucederia. Dino, o gato vira-latas que frequentava o beco, pos-se a cheirar a pasta encefálica que se misturava ao sangue do menino. Ai, Jesus, esclamou uma beata que deu com a cena enquanto vinha de mexericos com uma de suas irmãs de fé. Mal sabe ela e, para ser fiel ao relato, só virá a sabê-lo mais tarde, quando chegue em casa de sua filha, que o, palavras dela, “mais um desses garotos vagabundos de rua” era Rubinho, seu neto. Aliás, Rubinho era dessas crianças mimadas, criadas a pão-de-ló. Estudava em colégio chique, daqueles que davam goiabada com queijo fresco no lanche da tarde. Seus pais, aspirantes às altas rodas da sociedade, haviam prosperado no ramo da confeitaria. Jomar, o pai, dono de talentos ímpares no manuseio do açucar, havia criado uma bomba de creme que, perdoem-me o trocadilho, era um estouro. Cinara, a mãe, frequentadora assídua de toda e qualquer reunião na qual houvesse senhoras de bem, fazia o comercial. Juntos, fizeram muito dinheiro e logo decidiram que Rubinho teria educação de lorde. Duas quadras dali, César de nascimento, Cesão para os íntimos, olhava fixamente para a lousa. Dona Zulmira, professora de Estudos Sociais, inquiria aos demais. Onde está Rubinho, que não voltou do intervalo? Quando terminou seu nono cigarro, nem circular, nem oficiais, nem rabecão e muito menos Rubinho. A tarde voltava ao seu fluxo normal. Dino, o gato, petecava entre as patas o novo brinquedo. O olho. Vivemos tempos confusos, pensou novamente, enquanto pagava a conta.

Confissões/Filosofadas/Reflexões

Você é milionário?

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Você é milionário, perguntou-me o menino que brincava no parque. Milionário, eu? Porque você acha isso, perguntei ao garoto. Esse seu óculos é de milionário, respondeu com naturalidade. Eu estava com um desses óculos de bancas de shopping, longe de ser de milionário… a não ser que o menino estivesse se referindo ao Milionário da dupla sertaneja! Ele estava só, brincava com um galho fino de algum arbusto. Você mora no meu prédio, eu disse ao garoto. Naquele, apontou com o arbusto enquanto seu rosto tentava fugir do sol que o ofuscava. Sim, aquele. Você é meu vizinho. É, eu já te vi por lá. Bom, eu vou embora, e estendi a mão em sinal de cumprimento. Você vai dar uma volta, disse ele apertando dois de meus dedos, pois sua pequena mão não dava conta da minha. Sim, vou andar um pouco. Tchau. Tchau.

Caminhei alguns metros até a portaria pensando que um dia eu já fui como aquele garoto. Uma simples criança brincando sozinha num canto qualquer. Uma criança com uma imaginação milionária. Talvez ele tenha visto em algum filme ou novela algum bacana bom de grana com um óculos igual o meu, talvez ele apenas tenha inventado de usar a palavra milionário com o primeiro transeunte que desse a sorte de cruzar a luta de espadas que ele encenava com o pequeno galho pouco antes de me notar. Talvez ele apenas quisesse puxar papo. Há, ainda, a chance de um LP de Milionário e José Rico estar dando sopa na casa de uma das avós. Muitas possibilidade…

Possibilidades. É, um dia eu já fui como ele. Hoje sou o vizinho antissocial que mal sabe o nome das pessoas que moram no meu andar. Hoje sou o professor que nunca guarda o nome dos seus alunos. Hoje sou apenas mais um dentre milhares de pequenos escritores que de quando em quando joga na grande rede um punhado de letras, um bocadinho de palavras. As trilhas seguidas até aqui foram tantas, mas não era disso que eu quero falar.

Certa vez, caminhando pelas areias da praia de Mongaguá, encontrei uma garota que havia estudado comigo em alguma série que me escapa neste momento. Eram uma época difícil para mim, por sorte, minha tia/madrinha me deixava ficar na sua casa no litoral enquanto ela viajava com o filho. Época em que eu não tinha a menor ideia do meu futuro. Péssimo aluno, sem muitos amigos, sem planos ou projetos claros para o futuro, eu apenas existia. Naquela tarde, caminhando sem pensar em nada, catando uma ou outra concha quebrada na areia, esbarrei com ela. Oi. Oi. Passando as férias aqui também? Pois é. Eu estou naquele prédio, e você. Ali. Vai na feirinha hoje a noite? Acenei que sim com a cabeça. Legal, a gente se vê, então. Ela se aproximou e beijou meu rosto. Tchau. Tchau.

Dias atrás, um amigo me indicou para umas aulas. Respondi o email. Marcou-se uma reunião. É engraçado como mesmo depois de 21 anos de sala de aula, eu ainda fico nervoso em uma entrevista. Boa tarde, apertos de mão. Me fale da sua experiência. Já fiz um pouco disso, um pouco daquilo. Esta é a ementa. Tranquilo, já leciono esses conteúdos. As aulas são tal dia. Puxa, tal dia não posso. Ah, que pena, queríamos que você trabalhasse conosco. Quem sabe semestre que vem. Entramos em contato. Até logo. Até logo.

Um dia eu acordei convicto de uma coisa. Coisa besta, obviamente. Fui até uma loja de brinquedos e compre um jipe de controle remoto. Mal a luz da bateria mudou de vermelha para verde e lá estava eu, no quintal, fazendo o jipe zero-bala capotar no concreto, na grama, no porcelanato da sala. Olhei para a câmera digital e um “e se” iluminou-se na mente. Um pouco de durex e fita isolante e o jipe agora gravava o seu trajeto. Eu acho que o video ainda está no youtube…

Ela desceu as escadas em silêncio. A família toda dormia nos quartos de cima, eu me ajeitava com o sofá da sala. Era dia de eu ir embora. Ela tinha uma lágrima nos olhos. Eu sabia, aquela seria a última vez que eu dormiria naquele sofá. Tudo passa, diria Heráclito, mas nessa época eu ainda não o conhecia. Fiquei na rodoviária, com cara de choro. Perdi o primeiro ônibus. O próximo só às 16h. Fui andar pela orla.

Uma madrugada de conversa mediados por telas e teclados. Uma outra madrugada em meio a outras centenas de pessoas, igualmente de conversa. Na primeira madrugada falamos de coisas como se fossemos amigos de longa data. Na segunda, tentávamos não demonstrar que era, tecnicamente, a segunda vez que nos víamos. Hoje deixo meus chinelos na sua casa.

É, carinha. Preciso te dizer uma coisa. Sim, eu sou milionário. Não de dinheiro, mas de possibilidades. Talvez seja isso que eu diga ao menino que mora no meu andar. Talvez não, talvez apenas deixe ele viver as possibilidades dele. Talvez.

E.

Confissões/Reflexões

Ponto de fuga

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Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

Wislawa Szymborska

Não se engane, ponto de fuga é onde as coisas se encontram… lá na perspectiva, o ponto de fuga é aquele lugar para o qual retas paralelas convergem. Tá certo, você vai me dizer que as retas paralelas nunca se encontram, afinal, por serem paralelas, tendem ao infinito sem nunca se encontrarem, dirá ainda que o ponto de fuga é um elemento representativo de um espaço tridimensional numa superfície bidimensional, blá, blá, blá… é, talvez você tenha razão! Talvez não… será?

Bem, pessoas não são objetos geométricos. Pessoas se encontram. Pessoas se desencontram. Às vezes os pontos de fuga são exatamente o que um mal entendedor de geometria entende, uma porta de escape, uma brecha no espaço para, como dizia o leão naquele antigo desenho, um saída estratégica pela esquerda (calma, amigo, nada que ver com política).

Nessa longa estrada da vida já me desencontrei diversas vezes. Diversas vezes perdi o rumo, fugi. Noutras a vida simplesmente me pôs para correr. E, sejamos honestos, houve vezes em que eu fiquei inerte, vendo a vida passar tão rápido quanto o trem observado num dos exemplos teóricos daquele cientista descabelado, o Einstein. Tudo é relativo. Por isso, a perspectiva na geometria necessita de um ponto de fuga, um local para onde tudo converge…

Bom, pessoas encontram-se. Às vezes, pessoas vão de encontro umas ás outras. Noutras vezes, vão ao encontro. Lembro daquela aula no mestrado, aquela na qual o professor explicava a diferença de ir de encontro e de ir ao encontro. Ele fazia gestos didáticos com as mãos, enfatizando que ir de encontro era chocar-se e, por outro lado, ir ao encontro era unir-se. Eu, lá no fundo da sala, pensava “mas isso é tão óbvio, por quê ele está explicando isso?”. Ele queira mostrar que no estudo de teorias e pensadores, existem ideias que vão de encontro e ideias que vão ao encontro… pessoas também.

Já bati de frente com muito caboclo por essas bandas. Houve um tempo em que nos degladiávamos atrás de pipas munidos de nossas latas de óleo de cozinha, verdadeiras luvas de boxe metálicas capazes de fazer sorrir os dentistas do bairro com tantos dentes quebrados nas bocas de moleques arruaceiros. Eu era um deles. Já fui de encontro com gente na escola, no trabalho, na vida… hoje ando devagar, atento às manhas e às manhãs. Se for pra dar de cara, que seja a 5km/h e sem latas de óleo Lizza.

Já encontrei muita gente que me fez sofrer, gente que me fez chorar. Acredite, agora eu sei. Mas nem tudo na vida são dores. Já encontrei gente fantástica. Gente incrível. Gente extraordinária. Algumas aquela dama da foice levou. Outras simplesmente estão por ai, em outras paisagens. Pois a vida nos leva, nos traz. Lembre-se, meu caro, minha cara, para cada ponto de fuga, há um ponto de vista. Vemos a cena de um ângulo e, se o ângulo muda, muda o ponto de fuga. O lugar para onde tudo converge é relativo. Santo Einstein!

Lá na física do muito pequeno, das coisas quânticas, uns caras com nomes difíceis disseram sobre a incerteza. O ponto de fuga pode fugir às regras. Talvez nada convirja (confesso, precisei consultar o dicionário para conjugar o verbo convergir). Talvez o ponto de fuga seja só um artifício, uma esperança de que lá onde termina o arco-íris haja um pote de ouro. Que retas paralelas um dia se cruzem, ainda que para isso tenhamos que abdicar de Euclides e flertar com Boole. Ainda que tenhamos que descartar Descartes e salpicar a vida de Morin… já disse o Pessoa, citando Sagres: viver não é preciso!

Bom, você deve estar pensando “para onde tudo isso converge?”, já que o título do palavrório de hoje é Ponto de Fuga… pois bem, gafanhoto, converge para os olhos castanhos que me fitam em manhãs preguiçosas. Manhãs cheias de manha, de café de cápsula em canecas roubadas (uma delas, ao menos). Minha reta um dia cruzou com a dela e, pode espernear o quanto quiser, seguem paralelas e enroscadas, como o cabo de energia do secador dela, que eu consertei dia desses. Entrelaçadas num emaranhado quântico. Unidas por uma força que nem Einstein e nem sua gravidade explicam. Meu ponto de fuga é uma pessoa. E nela eu converjo, cortejo, convivo, conjugo, comungo, completamente nem ai com a geometria ou com a física ou com as grandes questões que assolam a humanidade.

Duvida? Bem, está tudo lá, no livro das ocorrências… 😉

E.

escrivinhações

TecNÓSlogia

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Ele lá, ela cá
O celular o denunciou
Um print de tela, dela
Olha quem está perto, ele
O inbox respondido

Artimanhas do destino?
Alguém poderia dizer,
Foram os astros!
Mas sejamos honestos,
Os astros aqui,
Nada podem.

Voltemos…

Centenas de gente
Cadê você, ele
Já te vi, ela
Fila, cerveja
Mureta
Meu copo, seu copo…
(Opa!)
Copo dele, copo dela
Dois corpos próximos
Copos alheios à
Centena de gentes.

Seguiram a madrugada…
De lá para acolá
Entre gentes
Entre tietes
Entre confissões
Entregues

Fugiram
Sem romance
Uma mesa de plástico
Duas long necks
Amendoim
E nenhuma vontade de partir

Quando deram por si,
Era manhã.
Os astros,
Ofuscados pelo sol,
Não viram a long neck
Quebrada em cacos,
Eles em risos…

Beijos de boa noite
Em pleno (bom) dia.
Ela subiu as escadas
Ele cruzou a avenida
E, desde então,
Seguem ligados

Um NÓS apertado!

E.

Poemas e Poesias

Pobre lua

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Pobre lua, sozinha a orbitar.
Desculpe-me, não sou poeta.
Não comporei ode ao seu luar.

Não que não sejas bela!
Tu sabes, lua.
É que a tua é menor que a dela.

Ela, ó lua!
Ela me encanta.
Não te zangues.

Te quero bem.
Mas ela,
Ela me tem.

E.

Crônicas

Café gelado…

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Fiz tudo certo. Coloquei a cápsula na máquina, ajustei a caneca, a sua. Sim, quando você não está por aqui eu uso a sua caneca. É nela que eu bebo o meu café. Há muitas canecas aqui, e você dirá que são todas minhas, é verdade. Mas desde o primeiro café com você, essa sempre foi a sua caneca. Apertei o botão, o verde.

Abri os olhos. A claridade do dia que nascia já se fazia notar. Teu ombro desnudo me convidava a percorre-lo. Me permiti admira-lo por alguns segundos antes de projetar meu corpo sobre o seu, antes de seguir o contorno do teu ombro com meu rosto, roçando-te a pele com meus lábios, deslizando-me sobre a curva do teu pescoço, antes de sussurrar-te “bom dia” para, em seguida, afundar-me nos teus cabelos. Longos sorrisos estampados nos travesseiros.

Lá fora, a tarde vinha com uma chuva intensa. Diferente daquela chuvinha da manhã, mais calma, suave como teus beijos em meu rosto. Intensa, a chuva ao cair no cair da tarde respingava sobre a janela. Pequenas gotas de suor sobre nossos corpos intensos. Pequenos trovões ofegantes reverberando em lençóis amassados.

Quando dei por mim, a chuva despedia-se com umas poucas gotas aqui e ali. Na caneca, o café gelado, esquecido, testemunha da minha vontade de você. Troquei a cápsula, troquei a caneca, agora a minha. Apertei o botão, o verde…

Crônicas

Tobias

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Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia.

Há tempos Tobias era saco de pancadas na firma. Todos, sem exceção, zombavam dele. Uns descaradamente, outros, pelas costas, nas conversas ao redor da mesa do café. Até mesmo dona Judith, a copeira, aquela doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas. Café que aromatizava o escárnio sobre Tobias. Justo ela, agora, puxava o corredor polonês das palavras. Palavras baixas, palavras que vertiam fel. Dona Judith, pensou Tobias. Seria ela, ou melhor, através dela, que Tobias se vingaria. Sim, seria o café o veículo da sua vingança. Café que ele, Tobias, sequer gostava. Nunca fora dado aos fetiches do café. Nunca compreendeu direito as aglomerações e conversinhas em torno do café. Embora nunca tenha sido chamado a bebê-lo com os demais, achava-o ruim. Certa vez, sem que ninguém o visse, bebericou uma ou duas gotas. Foi o suficiente para que o asco lhe tomasse. O café lhe enjoava. Não o de dona Judith, mas qualquer café. Talvez por isso, pelo desprezo ao café, tenha sido justamente o café o seu eleito. Escrutinou a memória em busca do horário de maior movimento no canto do café. O canto asqueroso onde pessoas asquerosas diziam: Até quando vamos aturar o Tobias? Vejam, lá vem o Tobias, credo. Sai daqui, Tobias, ninguém te quer. Jurandir, o porteiro, todos os dias esperava, de tocaia, a chegada de Tobias. Tão logo Tobias lhe dava às costas, cuspia-lhe. Não um cuspe qualquer, mas daqueles, catarrentos, cuja a viscosidade impregnava quem dele fosse alvo. E o alvo era sempre Tobias. Às vezes errava, às vezes acertava. E em ambos os casos, Tobias seguia em silêncio, escravo de sua condição. Quando o dono da firma estava por perto, todos se faziam de bons-moços, uns até verbalizavam, hipócritas, uma saudação ao Tobias na frente de seu Cróvis. Sim, Cróvis, com erre mesmo. Na certa, um erro de registro. Seu Cróvis nascera na roça, em tempos outros. Mas, calma lá, a história é sobre o Tobias! E Tobias tinha a afeição de seu Cróvis. Era o único que se achegava no canto de Tobias, estrategicamente colocado, pelos demais, o mais distante possível da mesa do café. Mas seu Cróvis, depois de percorrer o galpão, recolhia-se em seu escritório, contabilizar a empresa. Tobias, longe de seu protetor, voltava a ser alvo dos olhares maldosos, das palavras virulentas. O café! Tobias arquitetava seu plano há dias. O melhor horário: após o almoço. Ao meio-dia todos se ausentavam para comer no restaurante próximo. Todos, menos dona Judith, que almoçava ás treze horas. Havia uma pequena janela de tempo, cinco minutos. Era o tempo entre dona Judith deixar o café pós-almoço coando na cozinha e ir buscar as garrafas térmicas na mesa do café. A maioria, logo após a volta do almoço, já rondava o canto do café. A porta da cozinha não se via de lá. Tobias teria exatos cinco minutos para sair do seu canto sem ser percebido, adentrar na cozinha e realizar sua vendetta.

Tobias olhou para os dois lados do galpão. Primeiro o esquerdo, depois o direito. Certificou-se que nenhuma alma testemunharia sua covardia. Caminhou sereno até uma pilha de caixas e esperou dona Judith sair da cozinha em busca da garrafa térmica. Fora do campo de visão de todos, Tobias entrou pela porta, saltou sobre a mesa, saltou para a pia e, diante do coador de pano que vertia o negro líquido para um canecão, ergueu a pata traseira e, com uma feição quase humana, com um sorriso de Monalisa, diriam, deixou verter sua urina, que ele segurava desde a manhã, para dentro do coador. Contou mentalmente os minutos e, ainda que lhe restassem mais alguns mililitros, saltou da pia direto ao chão, esgueirou-se pela porta e, novamente oculto pela pilha de caixas, passou despercebido por dona Judith, que cantarolava uma antiga canção enquanto trazia as garrafas térmicas vazias. Seguindo o ritual de sempre, dona Judith encheu ambas as garrafas, em uma delas, antes, adicionou as habituais colheradas de açúcar, afinal, era preciso agradar ambos os públicos, os da doçura e os da amargura. Garrafas cheias, voltou à mesa do café, saboreá-lo com os demais colegas.

Tobias ainda era filhote quando seu Cróvis o resgatou. Fora vitima da crueldade de uma bando de adolescentes. Haviam queimado-o plástico derretido, dado-lhe algumas pancadas com galhos de árvore e largado à beira da morte à beira da estrada. Perdera mais da metade dos pelos, tinha uma orelha partida ao meio e faltava-lhe um olho. Desde Seu Cróvis deu-lhe os cuidados necessários e um canto para ficar. E, do seu canto, agora, Tobias via seus algozes maldizendo o café de dona Judith. Mas que porcaria é essa? Experimenta isso, sua velha louca. O quê você colocou aqui? Em poucos minutos, dona Judith, a doce senhorinha que, de hora em hora, renovava o café nas garrafas térmicas, sentiu na pele a maledicência da qual somente um bicho humano é capaz. Tobias acompanhou-a com os olhos até a cozinha. Ouviu-a chorar e lamentar, entre suspiros, que aquilo, a forma como fora tratada, não se fazia nem com um cachorro. Seu Cróvis, que descia para o café, foi alertado. Estava um lixo, tinha gosto de urina, disseram-lhe. A caminho da cozinha, pronto a confortar dona Judith, seu Cróvis percebeu que Tobias não estava em seu canto. Chamou-o uma vez. Duas vezes. Três vezes. Nada.

Tobias, livre de sua covardia, havia ganhado o mundo, embora ainda estivesse a apenas dois quarteirões do galpão.

Crônicas

Apenas uma história de mãos dadas…

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A playlist toca uma velha música do Genesis, o vento sopra forte, um uivo se faz ouvir pela fresta da janela, mas apesar da pouca distância, reluto em fechá-la por completo. Faz frio lá fora e agora percebo que o cão que sempre costumava latir, sumiu.

Olho para a janela e vejo o meu reflexo. A imagem de mim mesmo se mistura a luminosidade âmbar das luzes do condomínio. Meu reflexo olha para mim ou eu olho para ele? Difícil saber…

Uma vez, num ônibus, voltando de uma viagem ao litoral, uma garota sentou-se ao meu lado. Sempre fui uma pessoas de poucos amigos, de poucas palavras. Eu vinha na poltrona do corredor. Muitos preferem a janela, mas quando se tem quase 1,90m, o corredor e a possibilidade de esticar as penas através dele é um pequeno luxo. Eu havia embarcado na rodoviária.

Naquela manhã eu havia terminado um namoro. Na verdade, haviam terminado comigo. Namoro de verão. Ela vivia no litoral, eu no interior. Passávamos alguns fins de semana juntos. Tenho boas lembranças daquele tempo, mas aquela era uma manhã triste. No auge dos meus 17 anos, a vida era uma incógnita!

A garota ficou com a poltrona da janela. Ajeitou sua mochila no compartimento de bagagens, pediu-me licença e sentou-se ao meu lado. Seu perfume era intenso. Tinha cabelos longos, lisos e que lhe caíam sobre os ombros. Num movimento delicado, puxou-os com os dedos para detrás da orelha, movimento que me permitiu, nas rápidas e discretas olhadelas de canto de olho, ver-lhe o perfil do rosto. Trajava jeans, uma blusa branca com desenhos cujo padrão eu não me recordo e trazia nas mãos um casaco cor de rosa. Ela era mais nova do que eu, talvez tivesse 15 ou 16 anos. Ciente da minha inabilidade em iniciar uma conversa trivial, apoiei a cabeça no encosto do banco e mergulhei nos meus pensamentos.

Já iniciada a subida da serra, quando o ônibus entrou no primeiro túnel, levei um susto. Ela havia segurado, com força, minha mão direita. Com a cabeça projetada para o peito, ela tinha os olhos fechados. A pressão de sua mão sobre a minha diminuiu quando o ônibus saiu do túnel. Ela soltou minha mão, me olhou envergonhada e disse:

– Desculpe, mas eu tenho medo desses túneis.
– Sem problemas — respondi sem saber ao certo o que dizer depois.
– Tem outros, né?
– Acho que sim, pelos menos mais dois.

Seu olhar procurava um ponto seguro, ela estava mais envergonhada do que eu.

– De que você tem medo? — perguntei depois de alguns segundos de silêncio.
– Não sei dizer, acho que é porque fica escuro.
– Você não precisa ter medo, eu já desci e subi essa serra várias vezes.

Antes que ela pudesse dizer algo, ela percebeu que outro túnel se aproximava. Seu olhar cruzou com o meu, havia ali um misto de angústia e cumplicidade. Lhe ofereci a mão. Ela fechou os olhos com um quase sorriso e o interior do ônibus escureceu. Feixes intercalados de luz amarelada, do interior do túnel, misturavam-se aos zumbidos e buzinas dos carros que vinham nas pistas paralelas ao ônibus. Nunca entendi porque as pessoas buzinavam dentro do túnel e a pressão da mão daquela garota sobre a minha dava a entender que aquilo a incomodava.

Aquele túnel era o mais longo, mas depois de um ou dois minutos, estávamos novamente na claridade de uma manhã cinza, como todas as manhãs na serra. Eu ainda segurava a mão dela, mesmo sabendo que daquele ponto em diante, não haveria mais túneis.

– Lugares escuros me dão medo — ela quebrou o silêncio.
– Mas não há porque ter medo, o escuro é apenas a ausência de luz.

Sempre fui metido a saber de tudo um pouco. Nessa época eu devorava livros sobre ocultismo e certamente devo ter tirado essa frase de algum deles.

– Você deve me achar boba.

Eu não soube o que dizer, apenas movi a cabeça em negativa. Até então, eu não havia reparado que, à exceção de duas senhoras que vinham nos primeiros bancos, um senhor que estava duas poltronas à frente e o próprio motorista, não havia mais ninguém no ônibus. Era uma segunda-feira, talvez um dia de pouco movimento.

– Às vezes demoro para dormir, por causa do escuro. Fico imaginando coisas.
– Coisas?
– Sim, coisas ruins que existem no escuro, na noite…
– Não existem coisas ruins no escuro — disse o menino que, 7 anos antes, se cagava nas calças de medo de ir do quarto ao banheiro no meio da madrugada! — Já parou para pensar que enquanto você está dormindo, tanta coisa boa acontece?
– Que coisas boas?
– Hum — pense, animal — tem pessoas que trabalham durante a noite. Médicos, policiais… o padeiro!
– O padeiro? — ela riu.
– Ué! Quando você acorda e come seu pão com manteiga, é graças ao padeiro, que na noite, sem medo do escuro, está trabalhando! — me senti um gênio da argumentação.
– Eu como pão de forma! — ela exclamou sorrindo para mim.

A playlist jogou um Paul Young na roda, fui catapultado para outras searas, outras lembranças… de um beijo roubado em uma festa a qual eu e o meu fiel escudeiro não havíamos sido convidados, beijo roubado da dona da festa, da garota mais bonita, que fez de mim capacho… maldito Paul Young! Voltemos ao ônibus.

Viemos o restante da viagem conversando trivialidades. Já em Sorocaba, eu desceria no corpo de bombeiros, ela iria até a rodoviária, onde alguém a esperava. Nos despedimos. Ela me acompanhou com os olhos enquanto eu desembarcava. Já na calçada, antes que o farol abrisse e o ônibus zarpasse, ela abriu a janela e disse:

– Meu nome é…

O motorista acelerou o ônibus, fazendo um ruído alto e o nome dela se perdeu entre a fumaça preta que o escapamento jogou na minha cara quando ele fez a troca de marcha. Até hoje ignoro o nome dela. Assim como ela deve ignorar o meu. Nunca mais a vi.

No auge dos meus 43 anos, a vida segue sendo uma incógnita…

E.

Reflexões

Ordinário…

Posted by Edgar on

O fantasma de Hume me assombra. Impressões, nada mais há que impressões. A solidez das minhas ideias se desmancha na profundidade daquele olhar. Ordinariamente, o sol nasce todos os dias.

O banho é o catalisador das minhas epifanias. A água morna que desce pelos ombros, o som desritmado das gotas atingem o piso, os fractais de respingos no box, panos de fundo de um processo maior: o turbilhão de fragmentos de uma noite, uma madrugada, um alvorecer. Cylon, eu não passo de um maldito cylon humano.

Ser ou não ser, eis a questão. Eu li Shakespeare na faculdade. Lembro menos da obra que da minha professora de literatura inglesa. Ela era jovem, bonita, inteligente. Antes de Shakespeare, em literatura norte-americana, fiz uma análise sobre um conto do meu xará Edgar Allan Poe. Devorei as páginas de Manuscrito Encontrado Numa Garrafa, cavei fundo a biblioteca da faculdade, não havia Google naqueles tempos, dei minha alma ao trabalho. No dia da apresentação, enquanto as colegas de classe me davam parabéns, a professora me olhou, colocou a mão no queixo em sinal de pausa, e cravou a minha sentença de morte: Edgar, eu esperava mais de você. Dramático? Sim, shakespeariano!

O príncipe atormentado, Hamlet, me atormentou. Quisera eu ser Horácio para dizer-lhe, foda-se Hamlet. Edgar Allan Poe me persegue até hoje, mas Shakespeare eu abandonei. Atormentado pela decepção da minha professora, nunca tive a coragem de lhe perguntar: o que raios você esperava de mim? De mim? Justo de mim? Ser ou não ser, acabei no teatro. Por circunstâncias que ficarão para outro texto, embarquei numa trupe teatral. Nada de Shakespeare, apenas Veríssimo, o filho. Numa noite de bebedeira com os caras da trupe, encontrei a minha professora com a trupe dela num desses bares da vida. Ela se levantou ao me ver, me chamou e me apresentou às pessoas da mesa: Edgar, o único da turma dele que teve 10 comigo. Aqui já estávamos em literatura inglesa. Não sei o que eu fiz com aquela prova sobre Hamlet, mas aquele 10 era tão ordinário quanto eu mesmo. Meu 10 estava em um manuscrito a ser encontrado numa garrafa.

Epifania, era sobre isso que eu falava. O banho, momento máximo das minhas epifanias. Battlestar Galactica está longe de ser tão notória quanto Hamlet, mas há dilemas que são universais, afinal, não é isso que torna algo clássico, a universalidade? Cylons humanos não sabem que são cylons, eles não sabem que são máquinas biológicas construídas por humanos de verdade (verdade?). Eles apenas pensam que são humanos e, como tais, que são especiais. E, meu amigo, existe uma grande distância entre se achar especial e ser especial. Ser ou não ser, eis a questão.

Ainda que a cena não seja essa, alguém aponta o dedo na sua cara. Te tira da sua confortável posição, ou, na ficcional Battlestar Galactica, um laser disparado no meio do seu peito e… bum! você renasce numa nave-de-ressureição e, em meio a fluídos e cabos, se percebe cylon. Com pele, ossos e um rosto atraente, mas nada mais que um cylon.

O problema das epifanias: elas estalam feito pipoca! Pá, pum, lá está ela… mas vai levar tempo, muito tempo para eu digerir o eco desse estalo.

E.